BRASIL É OCIDENTE?

 Raphael Machado 

O Conceito de "Civilização" e os seus Labirintos

Discute-se hoje se o Brasil é ou não é "ocidental". Grandes brasileiros como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda, Plínio Salgado e outros consideraram o Brasil como parte da civilização "latino-americana". Ora, latino refere-se ao fato de nossas origens ibéricas terem sido latinizadas, durante o domínio do Império Romano. Português e Espanhol são misturas de línguas de povos ibéricos ancestrais, iberos, lusitanos, árabes, judeus, celtas, visigodos etc, que passaram pelo latim, pela linguagem oficial do império romano. O latim teve origem no Lácio, região central na Itália, origem da própria Roma, capital dos imperadores romanos e capital da Itália até hoje.

Os países da peninsula Ibérica, por mais menosprezados que tenham sido pelos britânicos, são, efetivamente pertencentes ao Ocidente, à Europa, foram parte do Império Romano, o qual criou mesmo o conceito de Ocidente, de cultura ocidental etc.

O próprio conceito de civilização tem as suas controvérsias, porque a palavra tem sido usada por autores diferentes e em épocas diferentes para significar coisas distintas.

Norbert Elias (sociólogo alemão) afirma que "civilização" descreve o processo de como se estabelece a "domesticação humana" ao longo do tempo, através do progresso técnico, da burocratização e da centralização das relações humanas. Em outros, como Friedrich Engels, Augusto Comte e outros, civilização aparece como uma "fase" em uma evolução das formas sociais, usualmente seguindo a "selvageria" e a "barbárie". Para os pensadores iluministas e até os contemporâneos, existe apenas uma civilização, a civilização "humana", e a história humana é a história do progresso dessa única civilização, numa visão longínqua de que só há uma civilização, mas é um conceito um tanto eurocêntrico. 

Nietzsche foi um do que sepultou o otimismo positivista e cientificista do século XIX, demoliu a noção filosófica de "progresso", de "humanidade" e de loucuras semelhantes - senão, pensem, o positivismo, o cientificismo evitaram grandes guerras e conflitos? Não só não evitaram como forneceram mesmo a lógica, a liga necessária para usar a honra militar e a ciência tecnológica para melhor alcançar os objetivos de toda guerra. 

Oswald Spengler, filósofo alemão, autor de "O Declínio do Ocidente", diz que a civilização é o "espelho" da Cultura, e que cultura é algo plural, a soma ou síntese de muitas influências. As civilizações seriam as fases finais das culturas, as culturas são algo mais natural, mais orgânico, mais espontâneo.

Nenhum autor sério sugere que "civilização" tenha ligação com "hemisfério ocidental" ou "oriental". Falar em "civilização ocidental" se contrapõe à "civilização oriental" exclusivamente na mente de alguns brasileiros. e vice-versa. Nenhum teórico das civilizações afirmou uma localização espacial geográfica para o conceito de civilização.

Civilização por localização geográfica colocaria brasileiros, estadunidenses, ingleses, portugueses, tupis e iorubás todos no mesmo balaio, na "civilização ocidental", poloneses, etíopes, persas e japoneses pertenceriam à "civilização oriental". É claro que isso não faz sentido. 

Na perspectiva védica, a civilização obedece a ciclos cósmicos de grandes proporções de tempo, daí temos a Era de Kali, Dwapara, Treta e Satya. No sistema cíclico e idealista de Platão, calcado ainda na passagem das eras astrológicas, cada signo, era ou constelação dura cerca de 2160 anos, a passagem do sol pelos 12 signos ou constelações ou eras terá a duração de 25920 anos. No decorrer deste período teríamos uma fase de criação e expansão, uma fase de estabilidade e uma fase de contração e destruição. Esse ciclo significa nascimento, crescimento e morte, e está relacionado ao lento movimento conhecido como precessão dos equinócios. 

 Os teóricos das civilizações podem ser também defensores de uma visão cíclica, mas não de ciclos cósmicas, cosmológicos, como se dá em Platão e, mais ainda, na cultura védica, que lida com conceitos de milhões e até bilhões de anos, além da compreensão humana, os teóricos das civilizações defendem ciclos, mas ligados às estruturas socioculturais humanas. 

Nikolai Danilevsky (sociólogo russo) estudou e destacou as seguintes civilizações: 1) egípcia, 2) assírio-fenício-babilônica, 3) chinesa, 4) caldeia, 5) indiana, 6) iraniana, 7) hebreia, 8) grega, 9) romana, 10) árabe, 11) romano-germânica (europeia). Danilevsky considerou o eslavo como ainda estando na infância, portanto uma civilização russa, estaria ainda na infância, também evocou a possibilidade de vir a existir uma "civilização americana". 

Para Oswald Spengler, pode-se falar nas seguintes culturas: 1) egípcia, 2) babilônica, 3) indiana, 4) chinesa, 5) meso-americana, 6) greco-romana (apolínea), 7) perso-árabe-bizantina (magiana), 8) ocidental (faustiana), 9) russa. Está é uma das listas de Spengler, os conceitos, apolíneo, magiano e faustiano são usados em suas análises, apolíneo tende à racionalidade, à logica, à medida e harmonia, confirme a concepção de Grécia clássica, magiano vem de magia, misticismo, intuição, ocultismo, por exemplo, o Egito, e sob certo aspecto a Índia, e faustiano significa a busca do poder, ambição, tecnologia, individualismo e transformação do mundo, por exemplo, o império romano ou os EUA atual. Spengler previu o nascimento de uma nova civilização, a russa. Spengler exerceu influência na América Latina, inclusive no Brasil dos anos 30. 

Arnold Toynbee listará um número bem maior: 1) minoica, 2) shang, 3) indiana, 4) egípcia, 5) suméria, 6) andina, 7) maia, 8) helênica, 9) síria, 10) sínica, 11) índica, 12) hitita, 13) babilônica, 14) iucateca, 15) mexicana, 16) ocidental, 17) ortodoxo-russa, 18) ortodoxo-bizantina, 19) iraniana, 20) árabe, 21) chinesa, 22) nipo-coreana, 23) hindu.

Há ainda outras enumerações e classificações, como as de Gobineau, Leontiev, Quigley, Sorokin, Koneczny, Bagby e Coulborn, algumas bem famosas e recentes, como a de Samuel Huntington, que lista: 1) ocidental, 2) ortodoxa, 3) islâmica, 4) budista, 5) hindu, 6) africana, 7) latino-americana, 8) sínica, 9) japonesa.

A de Huntington é bem curiosa, tem algumas contradições. Certos atlanticistas, ela é criticada por "negar" o projeto pan-americanista, inerente o projeto de expansão estadunidense desde a Doutrina Monroe. Certos católicos latino-americanos dizem que , essa teoria negaria o nosso pertencimento, do Brasil, e da América Latina à "civilização judaico-greco-romana", que seria a "ocidental", a qual os católicos reivindicam. Os atlanticistas eslavos também criticam Huntington por querer que os seus países (inclusive a Rússia!) deveriam ser considerados parte da "civilização ocidental". A classificação de Huntington é, entretanto, muito boa, embora não exista uma classificação perfeita, Huntington acertou na mosca ao prever, de maneira contundente, uma oposição radical e fundamental entre a América Anglo-Saxã e a América Ibérica/Latina como pertencentes a diferentes civilizações.

Existe até mesmo uma doutrina ou ideologia, arielismo. O arielismo é uma corrente ideológica latino-americana aí do início do século XX, arielismo veio da obra Ariel, do escritor uruguaio José Enrique Rodó. Rodó criticou o utilitarismo materialista e imperialista anglo-saxão, contrapondo a este a cultura greco-latina herdadas pelos países hispânicos na América Latina

O arielismo trabalha pela distinção das figuras de Ariel e Calibã, personagens da obra, A Tempestade de Shakespeare, Ariel representa a parte espiritual e racional do ser humano, Calibã representa a parte instintiva e animal. deduzidos da obra shakespeariana. Daí Rodó associa Ariel ao espiritualismo e certo misticismo latino-americano, e Calibã ao materialismo e utilitarismo anglo-saxão, são duas visões, duas cosmovisões opostas de mundo. O arielismo influenciará vários outros importantes pensadores como José Vasconcelos, Manuel Ugarte, Haya de la Torre, e os brasileiros. 

Daí que foi preciso DESCOLAR uma diversificada e complexa cultura ibero-lusitana americana (de America do Sul e Central) em relação ao Ocidente, uma vez que Ocidente significa EUA, "América do Norte" e não somos de modo algum norte-americanos, a base da nossa cultura é diferente. Este é um movimento análogo ao de vários intelectuais, podemos citar aqui, Alain de Benoist, Claudio Mutti, Giorgio Locchi e mesmo Régis Debray que enxergaram uma Europa ocidental distinta do ocidente norte-americano.

Daí que quando se diz Ocidente, é algo complexo, é mais de um "Ocidente", a própria Europa, de onde veio o conceito de "Ocidente", se viu diferente da cultura norte-americana. Ocidente não significa Europa. Nós, brasileiros, não somos europeus, de modo algum, também não somos "americanos", uma vez que "americanos" se refere aos norte-americanos, especificamente aos estadunidenses, o cidadão dos EUA. Descendemos de portugueses, europeus meio bastardos, da Peninsula Ibérica, temos fortes raízes indígenas e africanas, é impossível negar, somos latino-americanos/ibero-americanos.

A confusão entre a América e o Ocidente (em um Ocidente que já confunde América do Norte e Europa), tornou-se elemento central da NARRATIVA atlanticista e neoconservadora, comum na "alt-right", que por "civilização ocidental" entende a defesa da cosmovisão individualista, talassocrática, materialista, utilitarista e comercial, a qual abarca também elementos de raízes semítico-hebraicas e mais modernamente, sionista.



Aquiles, guerreiro invencível, possui um ponto fraco em seu calcanhar, onde é mortalmente ferido por uma flecha. Um mundo de deuses, heróis e vilões parece estar bem presente na Europa de hoje, exceto que as sombras de Platão substituíram os próprios deuses e mitos arquetípicos. 

Roma, a herdeira da cultura da Grécia clássica, Roma é só a capital da Itália, o que não é pouco mas já foi, segundo se disse de si mesma, o unico "mundo civilizado", contraposto aos "bárbaros", fora de suas enormes fronteiras imperiais. Roma difunde seu idioma, seu Direito, suas instituições. 

O romano, o cidadão romano enxergava o mundo civilizado como o mundo em torno de Roma, associava o mundo bárbaro ao que existiria lá fora, além do mundo bárbaro estaria o mundo infernal, dos monstros. O bárbaro ainda gozava de certo apreço, era bárbaro mas poderia ser civilizado, num mundo ideal. 

E veio a mitologia cristã. O cristianismo trouxe a mensagem de fé e redenção, moldou profundamente a cultura e os valores ditos "ocidentais", influenciou enormemente a arte, a literatura, o direito, a política, a economia, a moral, os bons costumes, a decência, a ideia de pertencimento a um mundo ideal etc, etc. 

 A Europa medieval foi o mundo dos reinos militares feudais, a Igreja Católica dava a liga, a possibilidade de unir, de catequisar reinos hostis, inclusive bárbaros, a fé estaria acima das divisões tribais 

 O Renascimento reavivou o interesse pela cultura clássica, impulsionou o desenvolvimento científico, artístico e intelectual. As navegações portuguesas e espanholas expandiram o domínio europeu para as Américas, África e Ásia, intensificando o colonialismo e o mercantilismo. O Iluminismo exaltou a razão, a liberdade individual e o progresso, influenciando as revoluções americana e francesa e a formação dos Estados modernos. A Revolução Industrial e o imperialismo europeu consolidaram a hegemonia ocidental no cenário global, com impactos profundos e permanentes na economia, na política e na sociedade.

Com a revolução socialista, melhor dizer, com a revolução bolshevique e o maoismo chinês e o seu fim derradeiro, entramos numa época de maiores desafios e reflexões. Será um mero acaso que os países vistos com maiores ressalvas no período da Guerra-Fria, época de grandes embates ideológicos, são exatamente os que lideram a formação do mundo multipolar? A narrativa eurocêntrica, que coloca o Ocidente no centro da história e da civilização, ainda ousa se ver como a principal? O "ocidente" não é mais um bloco monolítico, nunca foi, vale dizer, melhor seria se se visse como um conjunto de países com culturas, histórias e tradições diversas, integradas pelo passado cristão. Uma guerra civilizacional e religiosa está se formando em suas entranhas


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